FACE ESCARPADA


Aquela voz ansiosa,
áspera, no aflitismo burocrático de cumprir,
anuncia ao mundo
o desastre definitivo da simplicidade.
Eu sei que não sabes do que estou a falar,
mas acredita que anuncia.
A isso se chamará trabalho,
mesmo que o não seja,
somente um frenético esbracejar inútil e doloroso de um Portugal eminentemente chato.
Tão chato que ainda apetece mais emigrar para a Austrália,
assim numas férias tão longe que isto não lembre, não cheire nem saiba.
Blogarei sobre tal coisa e ai de mim se não blogar, pois doer-me-á
a parte entre os ossos onde a consciência se aninha, havendo, como há,
consciência até nos ósseos interstícios dos corpos e no meu.
Onde faltam os olhos, porque faltam, falta a compaixão e a serenidade em tempos tão selváticos!
O dinheiro grita e esmaga.
As botifarras do dinheiro marcham sobre o cadáver dos desempregados.
Eis o desbragamento do dinheiro, o seu triunfo sobre o homem.
Ele pisa de défice toda a gente que é gente e não compra carros de luxo,
só as sandes possíveis.
Hoje não posso ter face.
Perdi a face como quem se gastou a olhar o mar numa espera baldada.
Nada vem aportar aqui.
Por isso sangro,
deslocaliza-se-me o coração para onde o lucro de existir me pague melhor
- quero em pensamentos e recordações o pagamento.
No Irão, penso o preto e o cinza imperiais da rebeldia: não nos preocupemos com o Irão,
que hostiliza e enforca Alá no criminoso e no inocente
e gostaria de aniquilar Alá disfarçado de Israel.
Andemos tranquilos porque o mundo é pouco comparado com a glória aladina
que ali se há-de desembainhar.
Entretanto, novamente esta voz de um rosto duro incide como um sol equatorial sobre a minha esperança perdida.
Ó tempo de mulheres-macho chefiando os departamentos dos hipermercados,
corajosas a despedir subordinadas e a derramar ironias
e epanadiploses irónicas!
Eclipse-se tudo!
Haja só o tempo em que eu chapinava nas poças da maré baixa e em que já falava inglês,
apesar de ter só cinco anos. Entre caranguejos, pequenos peixes, pequenos camarões,
havia mais leveza e nuvens brancas no horizonte e uma brisa estável
provinda do norte.
Depois, sobre a areia limpa, rescendendo muito a sal,
escavava toda a manhã ou toda a tarde e por pouco não chegava à China,
impedido talvez pela maré cheia, que refluia e avançava ameaçadoramente.
Paus e pedras inócuas na praia.
Girinos e enguias nos ribeiros quase mortos.
Pinheiros nos pinhais.
Infância na infância.
Lia muito e escrevia muito, mas a terra era o vestido de sempre.
Amava o pó e a fome de muitas horas transpirando.
Ninguém reparava na importância arquitectónica, escultural, disso de escrever e ler muito
em mim, tão novo.
Por que é que ninguém compreendia nas minhas linhas preenchidas uma pulsão de arte?
Arte, coisa de somenos, comparada com a emergência em mim de um
físico nuclear!
Minha praia ampla e limpa, como me eras o mundo rindo feliz
jogando à bola e tomando banho na hora certa
e às vezes na hora errada de tomar banho com espuma e sal!
Minhas ondas alterosas, onde corpos balouçavam
num cavalgar em êxtase,
Praia,
ondas,
sem política,
sem défice,
sem produtividade,
sem dinheiro.
Volta, liberdade!

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