DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA EM SER ADULTO


Está tudo errado!
Quero ser menino pequeno outra vez.
Sentar-me de novo a uma mesa de café
e sentir a sensação redentora e real
de levitar por não chegar com os pés ao chão.
Sentar-me sossegadamente irrequieto
à frente ou ao lado do meu pai.
Ora à frente, ora ao lado, até que me decida.
Pedir-lhe que me compre um carrinho
e conduzir a miniatura pelo chão todo ruidosamente imitativo do motor de um carro grande.
Sentar-me e ver que há um enorme jornal aberto que me oculta todo o tronco do meu pai.
Sentar-me depois de espreitar a caixa do engraxador.
Sentar-me e responder, após o habitual «O que queres tomar?» que quero
uma torrada e um copo de leite com groselha e uma palhinha.
Sentar-me a essa mesa de café e reparar que é domingo
e não me apetecia nada ir à missa, mas que lá a música é linda
e o meu pai perfeito a cantar, que o Padre Brochado incentiva e faz pensar.
Ó poder recuperar a liberdade de não ter responsabilidades nem contas a prestar,
andar envolvido em inocência e sentir-se amado como um bebé em amniótico líquido.
Ser sem-abrigo deve ser uma forma de rebelião contra isto não ser o Céu que deveria ser,
contra a lógica de ter de pagar tudo,
contra a realidade de tudo se conquistar e nada se partilhar,
deve ser uma rebelião contra ser grande,
rebelião por se ter crescido e, se calhar,
a melhor forma de rir da seriedade toda em se ser produtivo,
bem sucedido, instantaneamente engenheiro,
licenciado em habilidade, manobras de bastidor e em gestão de imagem,
rir de esse ganhar uma sinecura num Banco (pode ser a Mama Geral de Propósitos,
como o honestíssimo Vara, ou a GLUPE, como o competentíssimo Fernando Gomes,
que não se tem notado que fale porque não se fala enquanto se mama de boca cheia),
ou numa puta de uma Direcção Geral, onde se passam horas na Internet e a ler jornais
enquanto se coçam produtivamente os colhões,
ou no magnífico Ministério da Agricultura ou a mamar os subsídios
culturais depois de dúzias de cartas e faxes e emails e telefonemas e SMS's e cartazes
e queixinhas a fãs adorativamente admiradores e coconspirativos.
Ah, quem me dera anticrescer em direcção a ter outra vez cinco anos!
Ou então tornar-me um sincero sem-abrigo no núcleo mais dura da minha alma!
Queria regredir no meu corpo e novamente diminutar-me na leveza de voar
e sonhar com vôo.
Queria desexperienciar e desaprender tudo
para volta a simplificar a felicidade de não ter nada, de não ter que ter nada,
de não ter culpa de nada...
É tão mais fácil aceitar o destino quando nada há a ambicionar,
nem o ir à loja por pão,
nem o ir à loja por iogurtes e fruta,
nem o ter que levar o carro ao mecânico
e comprar medicamentos,
nem o ter que contar os tostões
e sentir-me oprimido pelo Ministério da Educação que trata as professores como merda,
e ver que os professores compreendem e aceitam naturalmente ser tratados como merda,
e tudo!
É tão mais fácil quando nada mais há que brincar e nada querer da vida senão
o próximo filme de cowboys a preto e branco e bolachas maria com leite por lanche.
É inútil!
A vida é somente um papel rascunhado onde nos enganamos muito, amarrotado.
Talvez morrer seja finalmente passar tudo a limpo!

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