MÉNAGE A TROIS-CICLO E TRÊS OUTRAS NOCTEXSUDAÇÕES


1. Aparecem-me aqui casais tensos, num circuito fechado de dependências
e habituações anuladoras de si.
Estes dois, casados há quinze anos, festejam aqui o respectivo aniversário.
Entram. Há bolo. O whisky vai de mão em mão
acendendo uma loquacidade e um tesão e uma euforia
inesperadamente previsíveis.
lkj
Encontrada por fulano (conhecido e ocasional), desata a dançar com ele.
Fulano agarra bem a aniversariante. A aniversariante deixa-se agarrar,
arrebatada por uma muito dura e muito erecta fulanidade interessada.
O marido co-aniversariante começa a inchar de raiva, molesta-o um ciúme ardente.
Sai do Pub intempestivo, pagando a sua conta.
Ela deixa-se ficar com quem está, assim, dançando,
naquela intensidade morna de quem não tem um minuto a perder,
perdida a quimérica juventude.
Os amigos também dançam, sorriem, bebem,
semi-alheios ao pequeno drama que se desenrola.
O marido regressa afogueado. Reentra inconformado. Volta a sair, confuso.
ljj
Ela não se desesperara. Não viera atrás de si. Estava ali com cenas impróprias.
Álcool convincente e cómico,
manda dizer lá para dentro que vai tudo à pistola. Afasta-se depois.
E nada. Nenhuma reacção. Nenhuma negociação a partir do miolo irredutível da festa.
Nenhum retroceder de coisa nenhuma do roço e das festinhas corpo a corpo.
Regressa novamente. Rebola. Espuma.
Está furioso, mas a sua fúria é apenas cómica, pícara quase...
Não há nele a frieza morta e muda dos assassinos,
mas o espalhafato perigoso dos palhaços.
lkj
Sem lhe ser pedido, a mulher, exausta das cenas, acaba por explicar-se,
tomando-me pelo confessor mais mão embriagada.
Aquele era o seu segundo marido. Passara já muito tempo. Enfim...
Tinha apetites. Queria dar-se a quem lhe apetecesse e desejasse,
se não fosse a puta da culpabilidade e respectiva cultura, era o que faria.
Era o aonde iria, com gosto e gula e risco.
Era isso. Queria dar, mas não dava.
Deixava-se ficar na anestesia de uma vontade nostalgiada.
O homem, esse, era simplesmente um recluso daqueles braços exclusivos
de que se sentia proprietário numa posse infeliz, desencontrada, autómata.
Mais por acomodação que por amor, não se soltava por aí. Era aquilo.
Descreveu-se, descreveu-o, conformada consigo, com os freios que se impunha.
Com aquele homem entalado na sua vida a bem e a mal.
Pagou. Partiram juntos. Juntos haviam chegado.
Cenas e mais cenas e mais cenas.
Estes vínculos de cera inoxidável mexem comigo!
lkj
2. Começa a ser mais exigente ficar aqui fora, ao frio.
Tenho o sangue quente, mas são sete horas entre o meio da noite
e o fim da madrugada. Às tantas, começo a congelar. Literalmente.
E não sou pago o suficiente para ficar roxo ou azulado
no processo de regulação que esta função imóvel pressupõe.
Lá dentro voga um enorme aconchego.
Oiço gargalhadas de mulher. Soam-me ao gargalhar de quando se está além dos cinquenta
e pouco mais falta para a evocação completa da bruxa negra da floresta negra
com que, perdidos, se depararam Hansel und Gretel.
Como eles precisava agora do calor de uma ampla lareira.
E do chocolate-bolacha nas paredes e móveis e tecto e tudo.
lkj
3. O Carlos, cliente habitual, faz cinquenta anos. Celebra as Bodas de Ouro com a vida.
Diz-me que haverá lá dentro um copo à minha espera... desde que o pague.
Sorrio. Agradeço. Dou-lhe os meus parabéns.
É simpático e empático este Carlos.
Lá dentro, dizem-mo sem que pergunte sob a forma de queixa,
distribui galanteios e sugestões sensuais brincalhonas ao ouvido de quantas mulheres vê
pela frente, numa generosidade verbal de bom samaritano ou de importuno.
Faz o que sabe e pode para reabilitar as energias de auto-confiança de uma líbido mortiça.
Muitas mulheres devidamente acompanhadas ao chegar,
vêm devidamente sós telefonar cá para fora
e, dada a proximidade inconfidencial comigo, acabam a telefonar-me,
a cheirar o meu Kouros Yves Saint Laurent,
entre breves impressões partilhadas e sorrisos devidamente correspondidos.
O frio acentua-se. Cresce. Vem para mim como um muro denso e invisível.
Desenvolve-se uma natural pressão urinária, mas, porra!, não há quem me renda.
Verto mais tarde. Ou então reabsorvo isto como faz um urso polar
sempre que hiberna.
lkhj
4. Tenho saudade da forte impressão
daquele já célebre ménage a trois-ciclo - as duas ucranianas,
equívocas operárias do corpo, e o seu cliente cativo e avaro e zeloso,
que lá dentro as apalpa e lhes mexe despudorado (faz parte do pacote!), contam-me.
Será que virão hoje também? Verei de novo deslumbrado aquele desconcertante
sistema solar, onde todo um Copérnico e todo um Galileu se reformulam
helioperifericamente? Aquelas duas luas humanas, sóis de seios,
múltiplos lábios, pele tão branca, orbitando sol tão oval de grunho, meu Deus?!
Tão oxímoro como para muitos que, além de professor, eu passe cartões
e passe frio e passe fome e ande as longas horas por uns míseros euros
complementares do meu pouco ou quase nada.
Na verdade, ela move-se.
A mulher é um corpo misterioso em perpétuo movimento
gravitacional em torno do que só ela bem sabe e bem oculta!
Não o narrei há oito dias, mas então ambas entabularam conversa espontânea comigo,
naquele luso-ucraniês que chega e sobra: «Uma dia, esta Pub vai ser minha!»
Sei que o sonho as move e pelo sonho se movem por-enquanto-mente escravas.
Fiquei sinceramente comovido e festejei-lhes a ambição, crente de que sim.
A sair, o seu cliente grunhiu uma impaciência qualquer.
Deixaram imediatamente de sorrir (faz parte do pacote!) e partiram os três
como um tríptico galheteiro azeiteiro e vinagreiro,
que as leis baniram já das mesas públicas.
Foi há oito dias.
lkj
Só mesmo a poesia para fazer justiça à epifania do humano mais esplendoroso.
Só mesmo a poesia me obriga à gloria desabrigada e dolorosa de ter de escrever,
de não poder senão escrever.

Comments

quintarantino said…
Fellini, agora sim, meu homem do catano, justificas o epíteto que dispensei ao amigo... tens uma escrita admirável quando dedilhas a realidade tangível.
Desculpa lá, mas não resisto: foda-se que escrever bem, caralho!
Tiago R Cardoso said…
brilhante Joshua, brilhante.

aguardo por um livro teu.
Ricardo Rayol said…
tu és um observador nato. e pelo jeito já está armando uma viagem para o paraíso tropical.

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