MANUAL SOBRE GENTE


Ao meu Amigo
çlk
GALINHA LABORAL
ljljk
Perante a nova lei laboral e todo edifício do trabalho com o Livro Branco e a Reforma
que se flexiprescreve e se flexiprepara, finco-galinha os pés em estrela na luz-asfalto.
Olho dextrivolúvel o horizonte-minhoca. Ainda tenho penas. Sinto-me quentinha nelas.
Não sei se vá, não sei se fique por vermes e migalhas catáveis do chão reluzente pós-chuva!
No Ovo, fui implume. No Fim, serei degolada, deplumada,
esventrada, cozinhada, comida, descarnada, desossada!
É natural! Sou Galinha Laboral.
lkj
A vida no Pub vai seguindo o seu caminho compensatório
de maiores agruras para mim. É verdade que,
afastado do ensino de uma forma semi-voluntária,
aproveito para lamber as feridas de ser professor
com o desapontamento pelo desassossego oco
que inconstitucionalmente o Ministério vai disfarçando de Reforma, palavra hoje
por muitos esgrimida, mesmo analistas de renome e blogue feito nas TV's
mas que significa basicamente foder com as pessoas, roubar-lhes a dignidade
e, se possível ou de preferência, todas as condições para uma vida familiar.
E tudo à pala do rigor. O único rigor por que suspiram os tecnocratas
do Ministério da Educação é o nosso rigor mortis psicológico e anímico.
lkj
Tornei-me mais decidido e estreito no agarrar-bóia o meu lugar na Noite Portuense.
Comecei há meses, como um estranho, estranhando tudo.
Mordi e engoli o meu orgulho. O trabalho entranhou-se-me
e flui-me agora natural e vital. O que faço é simples e ninguém me pressiona
ou abusa da minha paciência e integridade nos patamares violatórios da Escola.
A minha paciência e integridade passam bem incólumes na exigências da Noite.
Algumas horas gélidas, um final de madrugada com algum esforço físico
e garanto algum sustento em casa. Menos mal.
lkj
As noites sucedem-se, cheias de peripécias que levariam semanas a narrar
e que derramarei por aqui ao sabor do meu pós-sono.
Os clientes tornam-se-me familiares.
Vêm os mesmos pobres.
Vêm os mesmos ricos.
Mulheres solitárias cinquentinas que aportam aqui
saídas de altos carrões a lembrar Ministérios
ou Secretarias de Estado: chegam com os seus casacos de peles infalíveis,
com as suas consabidas jóias e plásticas (mamariamente em rotunda silicone pomo,
silicone em bucal beiçolas a insinuar fellatios infinitas)
e lançam-me um sorriso-chicote tímido que despreza, deseja e enlameia,
trazem a sua solidão tenebrosa e irresolúvel e partem com ela,
com o estrito consumo mínimo, (são rigorosas com o dinheiro e isto é típico de ricos!),
não me deixam uma moeda de cinquenta cêntimos nem de vinte, também nunca peço nada.
Partem, reentrando nos seus carrões à Ministério da Propaganda, infinitos BMW's,
lúbricos Mercedes lambendo a estrada
metálicos cunilinguus TDI de arte e precisão tecnológicas sedentas, rumorejando,
gemendo e chorando pela estrada à imagem das suas tristes condutoras.
Lá fora, ronda-as o moina barbudo que assedia todo o automobilista
que as suas pernas incansáveis alcancem.
Exige moedinhas de cinquenta cêntimos para cima
para a dose e para o fino. Chega a atirar ao chão, ameaçador e violento,
todas as moedas de vinte ou de dez cêntimos que lhe dêem.
Tem um tecto por automobilista.
Detém uma área de exploração e guarda-a como um urso a cria,
dormindo-hibernando sob as arcadas a fim de garantir uma safra
de mais de catorze horas logo ali por moedinhas, mal acorde malcheirento.
lkj
Ao meu Pub chegam também os bêbados do costume, já tocados,
sempre naquele leve cambalear de náufragos mal refeitos do arrastar-se até à praia,
do enclavinhar-se na derradeira rocha esguia. Ei-los que vêm!
O José Maria, tão manso e que chega com os seus bigodes Lech Walesa e a sua bonomia.
Aquele outro Velho hemidesdentado e barbudo, sempre bebido, atrevido e prevarivador
no que ao indevidamente tabagizar diz respeito e que já não fala o que se possa parecer
com um mínimo inteligível, proferindo centenas de milhar de "foda-se's"
por tudo e por nada. Tem ar de insuportável e concomitantemente mal-amado.
Por ter esboçado pifiamente aceder por quatro vezes
o cigarro dentro do Pub, provocatório, está-lhe vedado o acesso.
Ou o matosinhense Zé, que chega já com álcool e desata a falar, a falar
até que toda a gente deserta de o aturar: põe aquela língua oscilante na boca aberta
a perdigotar-me a face... É um desafio à minha paciência.
Tem um rostito de sapo, com os seus olhitos inchados, e anda-me fora e dentro,
por aqui perdido, cravando os ouvidos peregrinos e pacientes seja a quem for.
É vê-lo atrás das mulheres, a insistir por que fiquem, quando já vão saindo,
mortas por se soltarem daquele emplastro autocolante de gente.
lkj
Os bêbados, tal como as putas, marcam sempre.
Não sei se devido ao óbvio que obviam nos seus rostos, se devido ao facto de misteriosamente
se terem despojado de alguma coisa que tolda, tornando-se paradoxalmente transparentes.
Aquela doença de alma com que sucumbem, resgata-lhes algo precioso.
Quando os formosos pés do Filho de Deus pisaram este pó,
eram esses o centro daquele amor incondicional ao qual nada pode interpor-se.
Isso mantém-se válido porque o paradoxo da autenticidade emerge da Margem
e pela humilhação comparece uma verdade que toca:
os extremos tocam-se no plano do pecado e da santidade, sendo num caso
um inferno de ruptura atroz e no outro uma suavidade unificada, gratificante, toda de paz.
lkj
A minha esposa diz-me muitas vezes que eu só me apaixono pelos mais pobres,
que é só com eles que eu todo me empatizo e com os miseráveis que me sinto feliz,
que até me faço de miserável sem grandes razões para isso.
Se sim, é instintivo e intuitivo.
Diz-me também que me afasto dos outros, dos qualificados e cultos,
desprezando-os e sendo indiferente e frio com essas pessoas. Não sei.
Gosto das pessoas, de todas as pessoas e anelo por que não sofram
e os seus corações de dia para dia mais se assemelhem àquela luminosidade-aura
de transGente, que vejo nítida e notória nos bêbados e nas putas.
lkj
Comprazo-me em encontrar gente no descair das máscaras.
Habitado como está, rareia afinal gente no nosso mundo.
«Felizes as pessoas que têm misericórdia dos outros, pois Deus terá misericórdia delas.
Felizes as pessoas que têm o coração puro, pois elas verão a Deus.»
É esta, afinal, a minha carta de marear!

Comments

Tiago R Cardoso said…
Excelente, fico a aguardar o resto desta historia...
antonio ganhão said…
As galinhas laborais, esgravatam a vida e reduzem-se a depenicar um ou outro verme.

E dão tudo aos galos, cada vez mais no poleiro de cima, cada vez mais insaciáveis!
Um texto de excelência. Bom Carnaval. Abraço
quintarantino said…
Caríssimo amigo, dizes bem. Como sempre disparas setas certeiras, palavras consistentes, mas a puta da vida persiste e teima em nos ser cadela.
Rematas dizendo que não és de ferro e tens razão. Eu, como te respondi, tenho andado mais por aí do que por aqui (blogosfera). Razões da vida, umas dores de cabeça agoniantes e coisas a que um "pater familias" está sujeito a aturar não têm ajudado.
Anonymous said…
Feliz é o homem que tem um mapa na cabeça e uma bússola no coração.
antonio ganhão said…
Josh como te vais dar comigo? Que sou qualificado e culto? Apraz-me saber que sou tambémelite falida...
Tiago R Cardoso said…
Regressei para a continuação do teu texto e não fiquei desiludido, como sempre a tua escrita e tua forma de contar as coisas fascinam-me...

Já percebi porque nos demos bem, não sou qualificado e já me chamaram várias vezes de inculto...

Tirando a brincadeira, força e continua.

Popular Posts