DA COMPAIXÃO IMPLUME



Há uma moça, a Manuela, que gravita em torno do Pub
onde trabalho algumas noites da semana.
Toxicodependente, escalavrada,
aborda cada passante, cada cliente, cada possibilidade de gente,
por uma moeda pelo menos. Dela já falei aqui algumas vezes.
Terei sempre o que dizer porque toda a gente nos diz
e somos ditos por toda a gente.
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Por vezes, atreve-se e, naquele frenético movimento perpétuo,
vaivém penoso de alma penada, vem pedir um copo de água,
mesmo às beatas ainda fumegantes e abundantes nos amplos cinzeiros,
que como que supervisiono, vem-mas pedir.
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Pergunta-me se pode aproveitá-las. Claro que sim, digo-lhe.
A noite do Pub é feérica e longa e a safra da Manuela é equivalentemente longa,
solitária e agónica.
Como um beija-flor encandeado numa negra luz e por um negro nectar,
ei-la caminhando célere na escuridão, abordando, autómato, quem passa.
Ontem acercou-se de mim, sempre especado à porta, por um copo de água.
Trocamos muitas vezes olhares cúmplices tão expressivos
mesmo na inexpressividade com que aquele rosto cativo do vício todo se tolda
mesmo na inexpressividade do meu próprio rosto que se petrifica
com o passar das milhões de horas em cada madrugada interminável.
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Por isso, conversamos muito simplesmente assim
por aquela empatia essencial de seres em trânsito pela vida
cada qual sem vantagens especiais perante uma e mesma morte,
diferente a cada qual eventualmente apenas na cronologia e no processo,
mas um mesmo ponto axial, trânsito, para uma Vida em Plenitude.
É pelo menos esta a âncora de esperança vital
que me agarro e onde me enrosco consolado e preenchido,
onde enrosco também aqueles que amo e que vejo num tom x-radio,
como um lugar inexpugnável no meu espírito, apesar do lodo envolvente
apesar de quantas adversidades me contemplem.
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Ela guarda as distâncias, não de mim, que por vezes a abordo na rua
e lhe pergunto da vida e, se mo conta, festejo algum progresso abstémio
que, tímidos e curtos, os teve. Guarda distâncias do Pub, de empregados e patrões.
E ontem veio pedir-me um copo de água.
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Não me comovi, não se me marejaram os olhos de água, como nas cenas de filme
ou em algumas incompadecidas narrativas estritamente emocionalistas,
mas lembrei-me da minha Experiência do Livro e da sua Totalidade indelével
enquanto salvaguarda absoluta do outro tendo como sua lei fundamental a Compaixão,
essa base civilizacional e pessoal praticável e utópica,
cada vez mais rarefeita no Show da Política universal
e suas especulações experimentais do humano.
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Logo perscrutando um dos empregados cuja passagem aguardei, murmurei:
«Traz-me aqui um copo de água.
Nosso Senhor Jesus Cristo está ali com sede e tem pressa».
A Manuela é um vulto. É também uma mensagem que temos de saber ler
porque fala de nós e tem inscritos os caracteres da nossa mais insuspeita mendicidade
por moedas de amor e gestos de alma maior.
Acumula também uma exigência de acção interior, cuja cega omissão endurecida
um dia nos julgará no Grande Crivo que Há-de Vir.

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