ANCORADOURO AURICULAR


O jovem que, muito a medo inicialmente, veio entabulando conversa comigo
e que no fim da Noite me agarrou conversacionalmente, era marinheiro.
Chegara tarde, já a Noite dobrara a esquina e seguia então
pela segunda metade de eu ter de a suportar. Durante muito tempo,
eu resistira quando ele, em trânsito para fumar, procurava,
pelo puxar de conversa comigo, sentir-me mais à vontade e menos tenso
e inseguro.
lkj
Viera só. Estava só. Simples. Homem do mar.
Mas a todo o instante lembrava o seu grupo
de colegas marinheiros nada aconselháveis de albergar num Pub
e que haviam ficado na Pensão.
E dizia isto ébrio e inseguro, como que a garantir-se a costas quentes.
Ar cigano. Fala alentejana, nascido e vivido na Figueira da Foz,
com um ramo familiar em Matosinhos, em pouco tempo gastara ali no Pub imenso dinheiro.
Muito mais dinheiro que os mais abastados frequentadores.
«Sabes que este pessoal do mar ganha muito dinheiro.», quis ilustrar o meu patrão.
lkhj
Quatro cartões de consumo. Muitos whiskys velhos depois,
apanhou-me finalmente a jeito ali à porta
e começou a desenrolar o seu livro de memórias.
Gente entra. Gente sai e ele ali mortinho por falar de si,
apesar das constantes interrupções ao desejado confessionário.
lkj
Vinte e nove anos. Pesca de arrasto a seis milhas da costa. Disse-me as capturas.
O pregado e as outras espécies. Disse-me dos seus ganhos. Disse-me dos subornos
ao pessoal policial portuário, os esquemas simples de contornar a Guarda.
Disse-me da especialização em Minas e Armadilhas, durante o serviço militar,
e as razões daquela ampla cicatriz em pleno rosto. Estava ancorado em Leixões.
lkj
Havíamo-nos sentado. De narrativa em narrativa. De pausa em pausa, gente sai,
gente entra. Moreno, voz arrastada, ar esperto, fanfarrão, pouco viril, ar de eterno garoto,
menina dos olhos muito dilatada, enquanto, de repente entusiasmado,
relatava as aventuras com mulheres e arruaça de porto em porto.
«E as mamas fabulosas de uma mulher em Portimão que o meu irmão papou?!»,
tudo servido com ehs e ahs e um falar mais baixo em cochicho ao meu ouvido,
meu mártir ouvido de todos os bafos húmidos e de todos os maus hálitos
confidencialmente insignificantes de toda a gente!
ljlkj
E eu ali, por alguma razão paciente a dar-lhe os meus ouvidos a tal ponto
que se entusiasmou enormemente. Era o fim da madrugada. E a dado passo,
quando interrompi aquela lista de conversa para operar as minhas tarefas,
vêm entregar-me dois euros de gorjeta da parte do marinheiro.
Entregaram-mos tinha eu ido intraportas para uma rápida operação logística,
e quando voltava ainda lá estava no Bar: apertei-lhe a mão, agradecido
e fazia intenção de seguir para o meu posto, mas o rapaz desculpou-se
de ter sido apenas dois euros e, num impulso, elogiando muito a conversa havida,
dá-me, logo ali, agora dez euros, que eu agarro com naturalidade, como nos filmes.
lkj
Bêbado como um cacho, decide prosseguir com a conversa. Não posso escapar-lhe.
O meu posto é incontornável. Por isso a conversa seguiu intercortada e saltitante,
se se pode chamar conversa a uma lista de factos biográficos auto-encomiosos,
miles gloriosus, pela hora e meia restante até toda a clientela ter saído e muito a custo
ele ter partido após vozeirar comicidades, brincadeiras e contentamentos por ali.
lkj
Como uma âncora que não é içada no tempo devido, fazendo de quem o ouve
o brinquedo que se estraga e de que se abusa, lançando piadas a quem passa,
de repente o jovem exige pagar-me uma bebida em plena perda de compostura.
E não mo exige a mim, mas ao meu patrão que lhe acede.
«Eu cá só bebo whisky velho!», fartava-se de repetir, como um refrão de estilo
e lá falava a partir das suas desconexões saturadas de álcool e memória.
lkj
Não estava em si. Eu estava farto de aturar isto. O certo é que o menino,
inspirado pela bebida, ao ver-me terminar antes dele o Whisky que me quis pagar,
desencadeou sorrindo uma analogia imperdoável,
numa imperdoável e inconsciente confiança comigo,
analogizando-me a uma puta, daquelas que nos bares de alterne
trabalham o ego dos clientes, estimulam o consumo de bebidas como a parte do pacote
mais rendoso aos seus patrões, sendo que o que aconteça depois será ou não será.
«Ah, eu aqui a falar a falar e tu a aí beber como uma puta daquelas».
lkj
Bom, era o fim da minha Noite e o jovem não estava em si. Porque teria tombado
logo ali quando a marreta do meu braço lhe varresse a cabeça do tronco
(os feitos de Diomedes, em A Ilíada, e outros passos são relatos fabulosos de violência militar
onde efectivamente não há mortes iguais no leal combate Aqueus vs. Troianos
e onde cada hipérbole é melhor que a próxima
explicam esta minha putativa reacção extrema
são um eco da minha absolutamente prazenteira leitura-degustação do clássico).
lkj
Por isso, comigo a ruminar essa frase assassina, ébria e artística, foi naturalmente
que me afastei dali silencioso, que me remeti ao meu serviço de fim de madrugada.
O jovem foi saltitando a sua atenção de funcionário em funcionário,
tagarelando infinitamente com todos, atirando os seus ditos espertos a eito,
(um táxi salvador efectivamente estava a caminho para recolher este chato e imaginei
que o Pierre, que é o rapaz da foto, pudesse tratar gentilmente de este moço ambíguo,
tremendamente pesado de suportar e quase fatal nas suas analogias criativas,
fosse eu como os outros que por muito menos espancam de um espancar impune!);
e eu fui seguindo com as minhas tarefas com garrafas vazias, com garrafas cheias
com toda a outra tralha de arrumar,
com toda a espera de receber ou não receber.
lkj
Agradeci intimamente ao Eduardo Pitta a oportunidade da vingança caridosa
proporcionada pela minha fantasia vingativa entre o rapaz da foto e o jovem bêbado.
Dei sinceramente graças a Deus por, no fundo,
não dar qualquer relevância a frases de gente fora de si.
Das consequências derradeiras e definitivas de as relevar,
estão os jornais cheios.

Comments

Joaninha said…
Eu gosto imenso destas tuas "historias" do Pub. Só ainda não entendi se são reais ou ficticias. Mas talvez isso lhes dê algum encanto.
Reais é favor.... Ai, homem...que paciência de Jó...Shua!!
Abraço!! Faz parte, ossos de um árduo ofício...

Popular Posts