BOUNDAGES E BORGES, O JORGE LUÍS


Noite longa. As marcas do assalto que sofri no outro dia reabrem no meu espírito
tanto mais que agora mesmo um automóvel foi ali vandalizado,
a porta do condutor semidobrada, o alarme disparara,
ali mesmo, nas barbas de este Pub,
e uns dois jovens que, procurando-me, vieram acenar com o facto de o alarme
ter disparado pareceram-me notoriamente os autores da coisa.
Pediram-me que avisasse no interior, anunciando a matrícula. Fi-lo.
E o dono surgiu. Depois acompanhou-os mas, não se sentindo seguro com aqueles,
que lhe pediram estranhamente mais adiante para abrir a porta do carro,
veio implorar-me apoio antes que de facto a abrisse diantes deles.
lkj
Fui. Uma vez ao pé do carro, os dois jovens exibiram uma destreza admirável
em inverter o vandalismo, redobrando a porta na zona da janela ao ponto de que ninguém diria
ter aquele sido vítima fosse do que fosse. Enquanto isso, contavam histórias:
que flagraram um suposto assaltante naquele trabalho danado a quem agrediram. Fugira. Agradeci a reparação improvisada da porta.
Apertei-lhes as mãos fitando-os muito. Afastámo-nos.
Uma gaivota, voando baixo de passagem, largou os seus dejectos
precisamente sobre os dois, merda de fragmentação estralejando no solo,
sobre as suas cabeças. Praguejaram e riram.
Fiquei com uma muito minha noção dos factos da tentativa de furto.
Lado a lado, enquanto regressávamos ao Pub,
a vítima e eu cumpliciamos nessa mesmíssima ideia.
Sem protestos, sem lamentos, o dono do carro conformou-se.
lkj
E a verdade é que paira a ideia de um suave caos na Cidade do Porto
que vai, pardo e sorna, ascendendo. Estratificam-se
espécimes nas suas safras dependentes:
no patamar mais baixo, remexem no esterco pedinte,
pedindo continuamente à gente que passa, os Tóxicos.
Mais acima, Jovens Magros e de rostos muito marcados de privações encostam-se
nas esquinas aguardando por toda a madrugada que turistas e hóspedes caros, com dinheiro,
os solicitem para loucuras em recantos ou locais expressamente criados para o efeito
porque às cidades nada falta para sossegar o instinto.
Mais adiante, uma profusão de Travestis descortinam-se nas avenidas
enlanguescendo muito o olhar à passagem seja de quem for com formato de homem,
brindando-nos com câmera-lentos alçares de perna
e trejeitos cinemáticos. Baixo os olhos e sorrio: dentro do meu coração
há um sorriso de pasmo e de respeito.
lkj
Finalmente nós, os que trabalhamos nos Pubs e equiparados,
um português para cinco ou mais brasileiros e outros sul-americanos,
também nos inscrevemos nesta espécie de fauna de aflitos por moeda,
pelas magras notas de vinte euros com que nos expomos ao trabalho e à exploração
que se pratica já fora da lei, ou melhor, para além dela e fora do mais que aí se prepara laboral:
temos há muito tempo toda a flexibilidade e toda a disponibilidade que imaginar se possa,
para verter um suor que nos mantém cativos, para aceitar umas cordas retributivas
com que nos amarram, amarras que nos retém no menos que o mínimo.
F
Foi justamente a prostituta Jociara que, nesta noite,
me mostrou um pingo de humanidade porque para onde vai e de que é feita a demais humanidade nas pessoas comuns é duvidoso.
Certo é não passar de um excrementício egoísmo cheio de morte e decadência dentro.
A humanidade das pessoas comuns por vezes é zero, é crueldade, é insensibilidade,
é comprazimento no servilismo dos outros, na escala sopeada da vida dos outros.
lkj
Seria necessário que muitas de estas pessoas habituais fossem maceradas na vida,
como o são as putas, para que nelas aflorasse um vestígio humano da qualidade das segundas,
um pingo de solidariedade e de sensibilidade que eu, muito honestamente,
nem em padres nem em grandes devotos consegui encontrar que me tocassem.
Jociara mostrou-se-me melhor que todos os outros juntos
naquilo que interessa e urge: o sustento, o dinheiro ligados ao sentido do outro.
Parece vulgar, mas é vital.
lkj
Ali estava eu a sangrar no meu posto, a remoer umas dores
cada vez mais agudas: já sabia que o meu patrão iria empurrar com a barriga
o pagar-me a tempo e horas, remetendo para o depois que lhe convém
e nessa convicção fui azedando intensamente, como um ferimento auto-infligido,
fui ficando muito hirto, a observá-lo na sua muito particular cegueira,
na sua talvez deliberada cegueira em compreender e atalhar à angústia de quem trabalha.
Fui ficando muito em sentido como um militar estacado na vigia,
incapaz de sorrir, a não ser quando alguém chegava ou alguém saía, meu dever,
e a Jociara, uma vez mais, veio sentar-se a meu lado com o seu cigarro,
pediu-me o favor de discretamente lhe ir buscar uns objectos pessoais que esquecera
noutro sector do Pub porque,
estando lá dentro o gordo que habitualmente a toma por sua e que hoje está inspirado
e com intenções penetrativas, roçantes e roncinantes, narra-me ela,
queria apanhá-lo distraído, enquanto ele conversava com alguém,
meter-se num táxi e abalar só para o lixar.
lkj
Eu bem apreciara num momento anterior o modo como o gordo barbudo,
segurando um copo, coreografara uma espécie de mambo colado ao corpo dela,
abraçados. Ela segurava um cigarro. Sorria. Olhava-me comunicativa por cima do ombro dele.
Éramos cúmplices na narrativa que me fizera do que lhe era aquele homem.
lkj
Faço o que me pede. Não pára de sorrir-me, Jociara.
Gosta de mim. É meiga. Confia em mim.
Quando regresso, agradece-me e prontamente dá-me dez euros.
E ainda me segreda ao ouvido: «Aquele filho da puta quer esvaziar os colhões,
mas eu vou fugir, vou meter-me num táxi e deixá-lo no desejo.»
Sorri. E foi. Só.
lkj
Nessa noite, Jociara, que é puta, que é meiga e suave
nos modos com que confidencia comigo por sua livre iniciativa,
cujo corpo tem todos os comandos operacionais
e cuja pele tem todos os cetins a descoberto
como antecipações abúrneas sob um tacto avivado,
foi mais gente que os demais. Foi, nessa noite, a única a ver-me.
lkj
Borges no Pub é outra história a narrar numa posta futura.

Comments

Devido à falta de tempo...o que me ressaltou à vista foi a frase:

"Aquele filho da puta quer esvaziar os colhões..."

Bem...depois disto...quase se fica sem palavras...está tudo dito.
Até me esqueci do que pretendia.
Vinha convidar à visita do blog http://www.tonymadureira.blogspot.com/, em apoio a um familiar meu.
Tiago R Cardoso said…
Mais uma vez, brilhante e narrativa com todas as palavra nos sítios certos.
Joaninha said…
O que eu gosto destas tuas postas Josh!
Está lindo como sempre.
Bjs
antonio ganhão said…
Um anjo aravessa a noite num pub, que é ele próprio a noite, implacável com as suas criaturas, tem na mão uma espada, um bisturi... não veio para salvar, nem para anunciar. Onde perdestes as tuas asas?

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