A CILADA

A tomada de posse do Governo Passos Coelho II foi um momento de esfuziante êxtase. Paulo Portas surgiu felicíssimo, confiantíssimo, sorridentíssimo, o que enfatiza um excepcional grau supercola na coligação. Ainda bem. Ele, que era o principal santo para o peditório socialista por ruptura, demissão, divisão na coisa governamental, deixou de poder ser um alvo. Já não há uma brecha para a Oposição explorar obsessionadamente, tirando a vulnerabilidade aparente da inamovível Maria Luís Albuquerque ou o estatuto gagá de Machete, espécie de sumptuário tardio, senecta anedota num ministério esvaziado em forma de sinecura, coisa que lhe não é estranha, depois de uma vida inteira a passear estilo e boa vida. A pergunta agora é esta: a quem e a quê se agarrará o PS, na sua mó retórica por eleições antecipadas ou por demissões forçadas?! Regressar esse PS ao comunicado demissionário de Portas, ao alarde da sua consciência, ao cansaço do adjectivo irrevogável já está gasto. Mas alguém tem paciência para essa insistência e essa merda?! Por que não se entretém o PS a conferir as suas próprias propostas apresentadas na Távola da Salvação Nacional e que o Governo Passos II engatilhará como passíveis do voto coerente favorável do mesmo PS?! Esqueçam Paulo Portas: sim, dissera que «ficar no Governo seria um acto de dissimulação», mas não é. Não é simplesmente porque o Governo já não é o mesmo. Não é materialmente o mesmo. Não é pessoalmente o mesmo. Não é retoricamente o mesmo. O segundo ciclo de governação, com Paulo Portas colado à cadeira, será o ciclo do negocialismo crescimentista, da multiplicação dos pães e dos peixes da convergência alargada de esforços: com Portas, o Governo Passos II negociará com um PS ancorado e vinculado ao que ele próprio subscreveu em cortes, medidas de estímulo e de crescimento. Com Portas, o Governo Passos II, além de aproveitar todas as propostas razoáveis apresentadas pelo PS, na semana soteriológica nacional, negociará com todos os agentes sociais e económicos, com empresários, com as forças vivas culturais, sem o bloqueio abrasivo das restrições passadas. É o céu a abrir-se na governação. Na verdade, não há ninguém mais entalado-obrigado a cooperar como o PS e ninguém mais feliz e livre como um passarinho que Paulo Portas. O PS passará à concordância forçada com este novo ciclo, dissimulando oposição. Dissimulará oposição, mas concordará com a baixa do IRC e com quantas medidas similares teria apresentado, se fosse Governo. Temos, portanto, oficiosamente um Governo de Coligação Alargada, PSD, CDS-PP e PS, sendo que, infelizmente, ninguém do PS tomou posse, mas não poderá dar o dito nas rondas pela salvação nacional por não dito: a cilada do Presidente da República funcionou, amarrou o PS a um compromisso tácito, e, por isso mesmo, o estatuto do PS na arena da Oposição só poderá ser o da dissimulação de discordância e alternativa. Alternativa a quê, se o Governo se prepara para absorver parte da sua agenda?! Para o PS, estar contra será um penoso acto ou efeito de dissimular; fingimento, disfarce; ocultação. Estar contra passará a coito envergonhado sob o íncubo governamental e não importa vir agora auspiciar o estado de morbilidade desta segunda versão: se as coisas começarem a mudar sensivelmente na economia, na doxa, na impressão de desanuviamento emocional das massas, o percurso aparentemente desastroso dos últimos dois anos será esquecido com a maior das facilidades: se duas das minhas irmãs de repente tivessem emprego, nós, cá em casa, esqueceríamos os últimos três anos sem esperança dele-emprego. E se, em vez de merda, passássemos a comer de modo mais variado e nutritivo, também esqueceríamos a merda que andamos a comer e porquê. Esquece-se de tudo, quando temos ou passamos a ter pelo menos mais dinheiro para gastar em carne e outros alimentos de que nos privamos como milhões de famílias empobrecidas, idosos sós, e animais domésticos negligenciados por força das circunstâncias. Este não será um novo ciclo apenas porque o Governo quer. Será um novo ciclo porque a maior parte do mal que era preciso fazer foi feito. O gasparismo foi um processo de destruição criativa, de terraplanagem possibilitadora de uma variegada reflorestação. Quando o PS vem, raivoso, falar-nos dos 127% de dívida pública, dos 10,6% de défice no primeiro trimestre, dos 4% de recessão acumulada e dos quase 18% de desemprego vem precisamente descrever o perigeu deliberado do gasparismo-troykismo, a partir do qual é, porque só pode ser, sempre a subir. A Fé, meu caríssimo e amado amigo Cardoso, a Fé faz acontecer. Tu hás-de concordar que os dois últimos anos não foram anos de falhanço, de desastre económico e de tragédia social por incompetência e incapacidade, mas por estratégia e movimento deliberado pensado em Berlim-Bruxelas e executado em Lisboa. Sempre que um homem quer, um novo ciclo nasce. O Governo Passos Coelho II dá-nos, finalmente, um negociador que ladra, morde e dá caneladas. Portas. Os portugueses pressentem que, perante a Troyka, Portas será um leão feroz e uma mãe de família acossada. Com a devida demonstração aos credores, acredito que ninguém senão Portas, transformará o Orçamento para 2014 e o corte de 4.700 milhões de euros num processo humanizado, mais dilatado no tempo, amenizando a austeridade, apesar de mais cortes nas pensões e nos salários a que este Governo, ou qualquer outro, está vinculado, para não falar no acréscimo de despedimentos na função pública, desemprego acrescido. Só mesmo Paulo Portas para enfrentar caninamente a Troyka, para fazer peito e defender os contribuintes e os pensionistas com os argumentos do crescimento incipiente observável e do que só ele saberá e ainda não disse. O tabuleiro de jogo foi virado. Os fracos passaram a fortes. Os fortes, que pedinchavam eleições e apontavam a nudez da governação, vão débeis, com risco gravíssimo de esvaziamento de bandeiras e argumentos. Havia uma cilada presidencial no meio do caminho.

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